sábado, 10 de setembro de 2016

11 de setembro - Victor Jara, presente !

Gisele Costa[1]

Somos cinco mil aqui nesta pequena parte da cidade. Somos cinco mil. Quantos somos no total nas cidades e em todo país? Só aqui, dez mil mãos que plantam e que fazem andar as fábricas. Quanta humanidade com fome, frio, pânico, dor pressão moral, terror e loucura (...) ! Que horror produz o rosto do fascismo! Levaram a cabo seus planos com astuta precisão, sem se importar com nada. O sangue para eles são medalhas. A matança, um ato de heroísmo. Esse é o mundo que você criou, meu Deus? Para isso teus sete dias de maravilha e trabalho? (...) O sangue do companheiro Presidente golpeia mais forte que as bombas e as metralhadoras, assim golpeará nosso punho novamente. Canto mal, quando tenho que cantar o terror. Terror com que vivo, com que morro. Terror de ver-me entre tantos e tantos momentos de infinito silêncio e do grito como meta desse canto. O que vejo, eu nunca vi. O que eu senti e sinto é que eles farão brotar o momento...”



Chile - Setembro de 1973- Há 42 anos, essas foram as últimas palavras de uma das maiores e mais doces vozes da música chilena e latino-americana. Essas foram as últimas palavras de Víctor Jara.

Talvez seja possível que na história singular de um homem esteja a história de um período histórico, as histórias de muitos homens e mulheres, seus conflitos, seus sonhos, suas glórias e lutas inglórias. É essa a condição da história de Víctor Jara na história recente do Chile e na história da América Latina.

Descendente de mapuche e brancos, Victor Jara expressava em seu rosto, as muitas feridas abertas do Chile e do subcontinente, mas com uma capacidade intelectual e uma sensibilidade ímpar, Jara fez da dor a fonte de sua poesia e da poesia fez a arma de sua crítica, sua voz entoou o esperar/o desesperar/o superar de uma América Latina de veias mestiças, pobre, campesina e obreira, mas esperançosa de si mesmo e de sua própria revolução socialista.

Expoente do movimento Nueva Canción Chilena, Víctor Jara resgatou por meio do teatro e da música, as submersas raízes indígenas e camponesas. Ao mesmo tempo se colocou como um contraponto à indústria cultural que adentrava na América Latina, por meio do rock estadunidense e inglês. Envolvido pelo contexto da Revolução Cubana, pelo sentimento anti-imperialista que tomava o subcontinente e pelo avanço da luta de classes no Chile, Jara deu voz às vozes silenciadas no chamado Terceiro Mundo, tal demonstra seu disco Derecho de Vivir en Paz, o qual dedicou ao povo vietnamita. Entretanto, referindo-se ao seu estilo musical, como também à produção de sua grande amiga Violeta Parra, Víctor sabia o papel político, mas, sobretudo humanizador que seu trabalho cumpria:

  
“As canções mobilizadoras ajudam em um momento, canções que cantam o povo (...). Mas existe outro tipo de canção, aquela que fica na alma do povo, e nisso Violeta era artista popular por excelência, porque ela não fazia canção mobilizadora no sentido contingente, mas sim a canção autenticamente popular e revolucionária, aquela que movimenta os sentimentos do Homem, que promove seu estado de consciência, onde ele descubra a si mesmo e seus semelhantes”. (Entrevista concedida ao radialista peruano Nicomedes Santa Cruz, na cidade de Lima-Peru, 1970)


Chile 1970: Do Homo Sentimentalis ao Homo Politicus

Entre o final dos anos de 1960 e início da década de 1970, ganhou força na América Latina, a teoria da dependência, cuja principal afirmação era que nos países periféricos, o subdesenvolvimento é um estado do capitalismo e não uma fase. Dessa maneira, nessas regiões o capitalismo deveria ser substituído pelo socialismo. 

A teoria da dependência influenciou profundamente a esquerda chilena e consequentemente o programa da Unidade Popular, no qual o centro não estava na distribuição de riquezas, senão na socialização da produção dela. Entretanto, a via escolhida pela Unidade Popular foram nacionalizações e reformas estruturais por dentro das instituições do próprio Estado.

Convictos que a mediação entre os sonhos do gênero humano e a realidade, não é outra coisa senão as ações dos próprios homens e mulheres, os artistas da Nueva Canción Chilena como Ángel e Isabel Parra, Patricio Manns, Rolando Alarcón e Víctor Jara ligaram-se organicamente ao projeto político da “via chilena ao socialismo” defendida por Salvador Allende. A própria campanha da Unidade Popular foi pautada em muitos elementos já então defendidos pela Nueva Canción, como o fim das injustiças sociais e a necessidade do anti-imperialismo.

Por meio da empolgação e empenho dos intelectuais orgânicos, artistas e estudantes, a campanha da Unidade Popular, chegou aos rincões mais distantes do país e foi assimilada pelos trabalhadores pobres que adotavam as músicas da Nueva Canción como trilha sonora de suas lutas, unificando peñas e poblaciones callampa (favelas).

Coube a Víctor Jara dar voz ao clamor popular que levou Salvador Allende ao poder em setembro de 1970. Interprete da segunda versão da música “Venceremos”, de Sérgio Ortega, Jara cantou a vitória da Unidade Popular e indiretamente ‘profetizou’ a reação da direita diante dela:




“Venceremos, venceremos
Con Allende en septiembre a vencer
Venceremos, venceremos
La Unidad Popular al poder
Con la fuerza que surge del pueblo
Una patria mejor hay que hacer
A golpear todos juntos y unidos
Al poder, al poder, al poder
Si la justa victoria de Allende la
derecha quisera ignorar
todo el pueblo resuelto y valiente como
un hombre se lenvantará"



        O entusiasmo com o projeto popular que ascendia no Chile permaneceu depois da vitória de Allende, em 4 de abril de 1970. Para os setores dos círculos culturais de esquerda tratava-se agora de estabelecer um diálogo com a juventude e os trabalhadores para consolidar os rumos de uma nova sociedade e lutar contra as forças reacionárias em curso.

Os três anos que seguiram depois da vitória da Unidade Popular foram caracterizados pelo acirramento da luta de classes. Tal como mostra brilhantemente o filme Chove sobre Santiago, do diretor Helvio Soto, a burguesia chilena, com o apoio da CIA e das ditaduras então implementadas no Cone Sul, orquestradamente tomou medidas de desestabilização política e econômica contra o governo Allende, entre as quais, o estocamento de mercadorias desencadeando o sumiço de produtos básicos do mercado.

Com o prelúdio do golpe cada vez mais forte, Victor e Pablo Neruda conclamaram, por meio da TV, a população contra o fascismo. Pouco tempo depois, em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet, nomeado pelo próprio Allende para o comando das forças armadas, deu o golpe de Estado e iniciou uma verdadeira caçada aos militantes de esquerda.


Um dia depois que as tortura, mortes e perseguições entrariam para a história recente do Chile, a própria história de Victor se cruzaria com o contexto de seu país. Os versos da canção Venceremos que embalou toda a campanha de Allende se concretizou. Contra o fascismo golpista, os trabalhadores e a juventude chilena se levantaram. Entretanto, o verbo vencer conjugado em 3ª pessoa do singular não se fez carne; a via chilena ao socialismo em pouco tempo foi destruída e as vozes que a anunciaram foram literalmente silenciadas. 


Preso na Universidade Técnica do Estado (UTE), juntamente com centenas de professores, estudantes e funcionários, Víctor Jara seria levado para o Estádio do Chile, o mesmo estádio em que ele  havia ganhado o festival da Nueva Canción em 1969, e que agora servia de campo de concentração para ele e para mais de cinco mil pessoas. Ali, Jara seria torturado, tendo suas mãos esmagadas por coronhadas e morto cinco dias depois com quarenta e quatro tiros.

Somente 23 anos depois do assassinato de Víctor, o Estado chileno reconheceu sua morte como crime da ditadura e no ano de 2003 o Estádio Chile foi rebatizado como Estádio Víctor Jara em sua homenagem. Entretanto, antes do reconhecimento oficial do Estado sobre sua morte, sua vida já estava eternizada por sua voz e sua luta. Afinal, como o próprio Víctor cantou: “(...) canto que ha sido valiente siempre será canción nueva”.  Víctor Jara Presente ! 




[1] Pedagoga, formada pela Universidade Estadual Paulista – UNESP e Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo - PROLAM/USP. 

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