Gisele
Costa[1]
Somos cinco mil aqui nesta
pequena parte da cidade. Somos cinco mil. Quantos somos no total nas cidades e
em todo país? Só aqui, dez mil mãos que plantam e que fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade com fome, frio, pânico, dor pressão moral, terror e loucura
(...) ! Que horror produz o rosto do fascismo! Levaram a cabo seus planos com
astuta precisão, sem se importar com nada. O sangue para eles são medalhas. A
matança, um ato de heroísmo. Esse é o mundo que você criou, meu Deus? Para isso
teus sete dias de maravilha e trabalho? (...) O sangue do companheiro
Presidente golpeia mais forte que as bombas e as metralhadoras, assim golpeará
nosso punho novamente. Canto mal, quando tenho que cantar o terror. Terror com
que vivo, com que morro. Terror de ver-me entre tantos e tantos momentos de
infinito silêncio e do grito como meta desse canto. O que vejo, eu nunca vi. O
que eu senti e sinto é que eles farão brotar o momento...”
Chile - Setembro de 1973- Há 42
anos, essas foram as últimas palavras de uma das maiores e mais doces vozes da
música chilena e latino-americana. Essas foram as últimas palavras de Víctor
Jara.
Talvez seja possível que na
história singular de um homem esteja a história de um período histórico, as
histórias de muitos homens e mulheres, seus conflitos, seus sonhos, suas
glórias e lutas inglórias. É essa a condição da história de Víctor Jara na
história recente do Chile e na história da América Latina.
Descendente de mapuche e brancos,
Victor Jara expressava em seu rosto, as muitas feridas abertas do Chile e do
subcontinente, mas com uma capacidade intelectual
e uma sensibilidade ímpar, Jara fez da dor a fonte de sua poesia e da poesia
fez a arma de sua crítica, sua voz entoou o esperar/o desesperar/o superar de
uma América Latina de veias mestiças, pobre, campesina e obreira, mas
esperançosa de si mesmo e de sua própria revolução socialista.
Expoente do movimento Nueva Canción Chilena, Víctor
Jara resgatou por meio do teatro e da música, as submersas raízes indígenas e
camponesas. Ao mesmo tempo se colocou como um contraponto à indústria cultural
que adentrava na América Latina, por meio do rock estadunidense e inglês.
Envolvido pelo contexto da Revolução Cubana, pelo sentimento anti-imperialista
que tomava o subcontinente e pelo avanço da luta de classes no Chile, Jara deu
voz às vozes silenciadas no chamado Terceiro
Mundo, tal demonstra seu disco Derecho
de Vivir en Paz, o qual
dedicou ao povo vietnamita. Entretanto, referindo-se ao seu estilo musical,
como também à produção de sua grande amiga Violeta Parra, Víctor sabia o papel
político, mas, sobretudo humanizador que seu trabalho cumpria:
“As canções mobilizadoras ajudam em um
momento, canções que cantam o povo (...). Mas existe outro tipo de canção,
aquela que fica na alma do povo, e nisso Violeta era artista popular por
excelência, porque ela não fazia canção mobilizadora no sentido contingente,
mas sim a canção autenticamente popular e revolucionária, aquela que movimenta
os sentimentos do Homem, que promove seu estado de consciência, onde ele descubra a si mesmo e seus
semelhantes”. (Entrevista concedida ao radialista peruano Nicomedes Santa Cruz,
na cidade de Lima-Peru, 1970)
Chile 1970: Do Homo
Sentimentalis ao Homo Politicus
Entre o final
dos anos de 1960 e início da década de 1970, ganhou força na América Latina, a
teoria da dependência, cuja principal afirmação era que nos países periféricos,
o subdesenvolvimento é um estado do capitalismo e não uma fase. Dessa maneira,
nessas regiões o capitalismo deveria ser substituído pelo socialismo.
A teoria da dependência
influenciou profundamente a esquerda chilena e consequentemente o programa da
Unidade Popular, no qual o centro não estava na distribuição de riquezas, senão
na socialização da produção dela. Entretanto, a via escolhida pela Unidade
Popular foram nacionalizações e reformas estruturais por dentro das
instituições do próprio Estado.
Convictos que a
mediação entre os sonhos do gênero humano e a realidade, não é outra coisa
senão as ações dos próprios homens e mulheres, os artistas da Nueva Canción Chilena como Ángel e Isabel Parra, Patricio
Manns, Rolando Alarcón e Víctor Jara ligaram-se organicamente ao projeto
político da “via chilena ao socialismo” defendida por Salvador Allende. A
própria campanha da Unidade Popular foi pautada em muitos elementos já então
defendidos pela Nueva Canción,
como o fim das injustiças sociais e a necessidade do anti-imperialismo.
Por meio da empolgação e
empenho dos intelectuais orgânicos, artistas e estudantes, a campanha da
Unidade Popular, chegou aos rincões mais distantes do país e foi assimilada
pelos trabalhadores pobres que adotavam as músicas da Nueva Canción como trilha sonora de suas lutas,
unificando peñas e poblaciones
callampa (favelas).
Coube a Víctor Jara dar voz ao
clamor popular que levou Salvador Allende ao poder em setembro de 1970.
Interprete da segunda versão da música “Venceremos”,
de Sérgio Ortega, Jara cantou a vitória da Unidade Popular e indiretamente ‘profetizou’ a
reação da direita diante dela:
“Venceremos, venceremos
Con Allende en septiembre a vencer
Venceremos, venceremos
La Unidad Popular al poder
Con la fuerza que surge del pueblo
Una patria mejor hay que hacer
A golpear todos juntos y unidos
Al poder, al poder, al poder
Si la justa victoria de Allende la
derecha quisera ignorar
todo el pueblo resuelto y valiente como
un hombre se lenvantará"
O entusiasmo com o projeto popular que ascendia no Chile
permaneceu depois da vitória de Allende, em 4 de abril de 1970. Para os setores
dos círculos culturais de esquerda tratava-se agora de estabelecer um diálogo
com a juventude e os trabalhadores para consolidar os rumos de uma nova
sociedade e lutar contra as forças reacionárias em curso.
Os três anos que seguiram depois
da vitória da Unidade Popular foram caracterizados pelo acirramento da luta de
classes. Tal como mostra brilhantemente o filme Chove sobre Santiago, do
diretor Helvio Soto, a burguesia chilena, com o apoio da CIA e das ditaduras
então implementadas no Cone Sul, orquestradamente tomou medidas de
desestabilização política e econômica contra o governo Allende, entre as quais,
o estocamento de mercadorias desencadeando o sumiço de produtos básicos do
mercado.
Com o prelúdio do golpe cada vez
mais forte, Victor e Pablo Neruda conclamaram, por meio da TV, a população
contra o fascismo. Pouco tempo depois, em 11 de setembro de 1973, o general
Augusto Pinochet, nomeado pelo próprio Allende para o comando das forças
armadas, deu o golpe de Estado e iniciou uma verdadeira caçada aos militantes
de esquerda.
Um dia depois que as tortura,
mortes e perseguições entrariam para a história recente do Chile, a própria
história de Victor se cruzaria com o contexto de seu país. Os versos da canção Venceremos que embalou toda a campanha de Allende
se concretizou. Contra o fascismo golpista, os trabalhadores e a juventude
chilena se levantaram. Entretanto, o verbo vencer conjugado em 3ª pessoa do
singular não se fez carne; a via chilena ao socialismo em pouco tempo foi
destruída e as vozes que a anunciaram foram literalmente silenciadas.
Preso na Universidade Técnica do
Estado (UTE), juntamente com centenas de professores, estudantes e
funcionários, Víctor Jara seria levado para o Estádio do Chile, o mesmo estádio
em que ele havia ganhado o
festival da Nueva Canción em 1969, e que agora servia de campo de concentração
para ele e para mais de cinco mil pessoas. Ali, Jara seria torturado, tendo
suas mãos esmagadas por coronhadas e morto cinco dias depois com quarenta e
quatro tiros.
Somente 23 anos depois do
assassinato de Víctor, o Estado chileno reconheceu sua morte como crime da
ditadura e no ano de 2003 o Estádio Chile foi rebatizado como Estádio Víctor
Jara em sua homenagem. Entretanto, antes do reconhecimento oficial do Estado
sobre sua morte, sua vida já estava eternizada por sua voz e sua luta. Afinal,
como o próprio Víctor cantou: “(...) canto que ha sido valiente siempre
será canción nueva”. Víctor
Jara Presente !
[1] Pedagoga,
formada pela Universidade Estadual Paulista – UNESP e Mestre em Integração da
América Latina pela Universidade de São Paulo - PROLAM/USP.