Gisele Sifroni[1]
Dos céus da Síria caças russos cospem fogo sobre cidades inteiras; por
terra, mulheres são alcançadas por balas letais iranianas que se alojam em suas
costas ou por mercenários-estupradores que se alojam em seus corpos e espíritos;
sob os escombros, os gemidos das crianças tornam-se pedidos universais de
socorro. O som da guerra contra o povo sírio só não é mais ensurdecedor do que
o silêncio gritante dos países imperialistas e da maioria da esquerda mundial,
convertida em tropa de choque ideológica de Bashar al-Assad.
Sob o pretexto de que a atual guerra na Síria teria sido travada exclusivamente
por setores pró-EUA que conspiram contra Assad, as diversas vertentes da
esquerda reformista mundial (estalinismo, castro-chavismo, neorreformismo, etc.),
justificam toda e qualquer atrocidade que o regime de Assad pratica contra o
povo sírio. Mas seria realmente o regime assadista de fato anti-imperialista?
Apoiador
do imperialismo no passado e apoiado pelo imperialismo no presente
O argumento de que a ditadura de Assad é um dos últimos bastiões
anti-imperialista no Oriente Médio não pode se sustentar frente uma análise
séria da história geopolítica da região nos últimos trinta anos.
Durante a Guerra do Golfo (1990-1991) sob o comando dos EUA, o regime Assad
participou ativamente com cinco mil soldados da chamada Operação Tempestade no Deserto, responsável por mais
de 100 mil bombardeios aéreos contra o Iraque e pela invasão por terra naquele
país.
As aproximações entre a ditadura Síria e o
imperialismo-sionismo seguiram no final do século XX. Em 1999, Hafez al-Assad, pai de Bashar al Assad,
buscou com o apoio dos EUA um acordo de paz com Israel, no qual o único ponto
era a devolução da Colina de Golã usurpada da Síria pelo país sionista, ignorando
totalmente que o reconhecimento do Estado de Israel é a autorização para a
existência desse enclave imperialista construído sobre o genocídio palestino. Não
por acaso, a morte de Hafez al-Assad fora com essas palavras lamentada por
Clinton: "Sempre o respeitei por sua franqueza e
porque senti que ele fez uma escolha estratégica em busca da paz. É uma pena
que a paz não tenha sido atingida enquanto ele viveu, mas espero que isso
aconteça". [2]
Os acontecimentos históricos citados
são mais do que suficientes para demonstrar o quão falaciosa é a égide do
discurso estalinista e castro-chavista que tenta proteger o regime Assad o
atribuindo um suposto caráter anti-imperialista. Todavia, é necessário explicitar
em tempo presente a aliança implícita do regime ditatorial sírio com o imperialismo.
No início do levante popular
sírio, a máscara anti-imperialista e anti-sionista do regime de Bashar al-Assad,
posta pelo estalinismo de todos os gostos e idiomas, fora arrancada pelos
bombardeios e pela fome que o regime burguês ditatorial promoveu contra o campo
de refugiados palestino, em Yarmouk. E no desenrolar da atual guerra na Síria,
os diversos campos de confronto se interligaram entre si, desmascarando ainda
mais a farsa anti-imperialista que protege o regime assadista.
Rússia e Irã entraram na
guerra em apoio aberto ao regime Assad e não como parte da defesa do povo sírio
contra as intervenções estadunidenses e europeias, mas como forças que buscam manter
suas zonas de influências no Oriente Médio, quando possível em parceria com o
próprio imperialismo, tal como mostra a efetiva aproximação entre Donald Trump
e Vladimir Putin, aproximação essa sacramentada agora pela nomeação de Rex
Tillerson, presidente da Exxon Mobil e aliado de Moscou, para Secretário de
Estado norte-americano.
Por outro lado, a retórica anti-Assad
dos países imperialistas não se mantém concretamente. Na verdade, o apoio
imperialista à ditadura assadista ocorre de modo passivo, no qual EUA e França
observam e permitem o massacre promovido pela Rússia e pelos mercenários
iranianos contra os rebeldes sírios, ao passo que os governos de Washington e
Paris também assumem a generalização de que todos os opositores do regime
ditatorial sírio seriam terroristas ligados ao Estado Islâmico (EL) e assim bombardeiam
com a autorização de Assad as regiões dominadas pela população síria opositora
ao regime, enquanto os grandes grupos petrolíferos estadunidenses e europeus
seguem adquirindo no mercado negro, petróleo controlado pelo EL, fortalecendo esse
grupo terrorista, cuja origem tem o DNA da própria inteligência militar yankee.
Dessa maneira, a única oposição
real e séria ao regime de Assad e ao Estado Islâmico é formada pelos rebeldes
sírios, a partir da organização popular em frentes militares depois da repressão
que o regime assadista perpetrou contra as manifestações civis que ocorreram em
2011, como parte da Primavera Árabe que sacudiu o Norte da África e parte do
Oriente Médio.
Apesar de todos esses
fatos, a Revolução Síria não tem a solidariedade da maioria da esquerda mundial,
de tal maneira que Assad se mantém não apenas pela a passividade imperialista
frente ao massacre do povo sírio diante das armas financiadas pelo capital
russo e iraniano, mas conta também com o arsenal ideológico estalinista que sintetiza
o pensamento de uma parte da esquerda que há muito tempo trocou a autonomia dos
povos e a defesa da ditadura do proletariado pela defesa de ditaduras
sanguinárias burguesas travestidas de campos progressistas, tal como a ditadura
de Bashar al-Assad.
[1]
Mestre em Integração da América Latina pela - Universidade de São Paulo (USP) e ativista em defesa do Povo
Palestino
[2]
Fonte: Jornal Folha de São Paulo http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1106200001.htm